sábado, 29 de abril de 2017

Um olhar sobre O Lobo da Estepe - Hermann Hesse

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HESSE, HERMANN. O lobo da estepe. Tradução e prefácio Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2016.


  Antes da leitura, é preciso ser feito uma advertência, a entrada é só para os raros, só para loucos, pois “este é um livro que não se lê inocuamente, por mera distração ou para se estar em dia com os sucessos do momento. É um livro que mexe, que altera, que subverte a estrutura psíquica do leitor” (p.7), conforme bem pontua o tradutor Ivo Barroso.

  Com efeito, a filosofia de Thomas Hobbes asseverava: “O homem é o lobo do homem”. Hermann Hesse, por usa vez, em 1927, trazia homem e lobo como facetas oposta da personalidade humana, em seu poético, psicológico e filosófico romance O Lobo da Estepe.

  A ideia do livro é sensacional: e se dado momento de sua vida você encontrasse um tratado sobre sua personalidade, analisando-lhe a vida, as atitudes e as preferências? E se o referido estudo fosse tão fidedigno a ponto de lhe tirar da zona de conforto e te fazer mergulhar em si, alterando sua percepção sobre o modo como vive, bem como abalando suas crenças?

  Certamente, isto lhe levaria a um mundo semelhante ao do Teatro Mágico, com efeitos psicodélicos e com direito a retorno no passado e a possibilidade de mudá-lo. Você faria uma viagem introspectiva e, a semelhança de G.H., de Clarice Lispector, perderia por instantes a sua montagem humana.

  Na obra, conhecemos o surpreendente protagonista Harry Haller, autodenominado Lobo da Estepe, a partir de pelo menos três pontos de vista. Pelo primeiro, um observador não muito familiar, relata o período aproximado de 10 meses, no qual o Lobo foi inquilino de um quarto de sua tia. Assim, escreve ele um prefácio ao livro, de modo a narrar o seu encontro com instigante senhor de idade e de sua admiração, a quem considera um “homem extraordinário” (p. 18), o que é reforçado na cena em que descreve com detalhes o poderoso “olhar” de Harry. 

  Ademais, conclui o editor fictício que: “Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido de várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível” (p. 21).

  Em seguida, a segunda narrativa, apresenta as anotações feitas pelo próprio Lobo. Nesta parte, encontramos um homem que se nomeia Lobo da Estepe, “aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível” (p. 41).

  Como se o indivíduo estivesse só no mundo tendo apenas a si mesmo, ou melhor, sua personalidade e as obras dos imortais, em especial as partituras de Mozart e os escritos de Goethe.

  Não haveria laços com as pretensões sociais da coletividade, como relacionamentos pessoais, disputa para ser o melhor, o mais esperto ou de ajudar a humanidade, de contribuir para algo ou o desejo de alguém. O homem viveria isolado da sociedade. Assim como um animal selvagem, um lobo da estepe.

  A última “voz narrativa”, ou melhor, O Tratado do Lobo da Estepe, é uma espécie de psicanálise dada por pessoa desconhecido da vida e personalidade da instigante personagem, fornecendo subsídios capazes de levar o protagonista a pensar sua vida e sua solidão.

  No supramencionado estudo, considera a natureza dual e discordante de Harry, “nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro” (p. 53). A dualidade está no fato do “‘homem’ encerra tudo o que há de espiritual, de sublime ou culto que encontra em si, e no "lobo" tudo o que há de instintivo, de selvagem e caótico” (p. 71).

  Desta forma, percebemo que o romance aborda a solidão, seja de amigos, de amores ou de laços sociais. O Lobo da Estepe, é um descrente desse mundo que passa a encontrar o que é felicidade após aproximação com Hermínia, em um enredo similar aos versos da música Corcovado, Tom Jobim (1960).

  Deste modo, ao conhecê-la e, por seu intermédio, Maria e Pablo, os quais o fazem conhecer um novo mundo de festas, bailes, drogas e sexo; a independência e o isolamento de Harry terminam. Esta vida intensa e notívaga leva-o ao Teatro Mágico e possibilidade de conversar com personalidades como Goethe e Mozart, com o fito de permitir o autoconhecimento do protagonista.

  Por todo o exposto, por abordar temas profundos como o questionamento sobre a necessidade da guerra ou da solidão, a importância das obras clássicas e das atuais manifestações culturais para o indivíduo, o suicídio, o vazio espiritual humano, sempre uma maneira filosófica, poética e bem aberta, a leitura do livro destaca-se por ser uma OBRA-PRIMA.



Trechos:


P. 19-20
[...] o Lobo da Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista, oh! um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e destruía a celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada; não, isso era o de menos. Havia nesse olhar um tanto mais de tristeza que de ironia; era na verdade um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual traduzia um desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só transverbava com sua desesperada claridade a pessoa do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a disposição do público e o título um tanto pretensioso da anunciada conferência não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem! E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas momices!

P. 48
eu podia arranjar-me mesmo sem música de câmara e sem amigo, e era ridículo consumir-me no impotente desejo de calor humano. Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.

P. 49
Éramos nós, velhos conhecedores e reverenciadores da verdadeira poesia de outros tempos, apenas uma minoria estúpida de complicados neuróticos, que amanhã seriam esquecidos e ridicularizados? O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente, nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?

P. 55 
Muita gente existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. 

P. 58 
tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não podia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida.

P. 60
a todos os suicidas é familiar a luta contra a tentação do suicídio. Cada um deles sabe muito bem, em algum canto de sua alma, que o suicídio, embora seja uma fuga, é uma fuga mesquinha e ilegítima, e que é mais nobre e belo deixar se abater pela vida do que por sua própria mão. Tendo consciência disso, a mórbida consciência que é praticamente a mesma daqueles satisfeitos consigo mesmos, os suicidas em sua maioria são impelidos a uma luta prolongada contra a tentação.

P. 62-63 
O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção.

P. 63 Tratado
Viver intensamente só se consegue à custa do eu.

P. 69 Tratado
Todo homem é uno quanto ao corpo, mas não quanto à alma.

P. 124
[Hermínia:] pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros.
  
P. 129
Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas "responsabilidades" políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra.

P. 145
[Pablo:] Ainda que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as coisas mais admiráveis a respeito delas, isto não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e coco um shitnmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue. Isto e somente isto é o que importa. Observe a fisionomia dos pares num salão de dança no momento em que a música volta a tocar após uma pausa prolongada, observe como os olhos brilham, como as pernas se movem e os rostos começam a sorrir. É por isso que se faz música.

P. 233-234
[Mozart:] O senhor tem de viver e aprender a rir. Tem de aprender a escutar a maldita música de rádio da vida, tem de reverenciar o espírito que existe por trás dela e rir-se da algaravia que há na frente. É tudo o que exigimos do senhor.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Olhar sobre + Misturado - Mart'nália


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  É carnaval! Enquanto uns vão pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar, fico ouvindo, escrevendo e lendo sobre o bom samba, tão comum nesta comemoração popular.

  Com efeito, a natureza humana é mesmo uma metamorfose ambulante, como bem viu Raul Seixas em sua composição homônima de 1973. Antes disso, nos idos de 1968, Martinho da Vila já dizia que “Ninguém conhece ninguém // Pois dentro de alguém, ninguém mora”. Com esses versos inicia o belo álbum de Mart'nália, + Misturado (2017).

  A cantora já mostrou que veio pra música quando encantou com sucessos como Cabide (Ana Carolina, 2006), Ela é a minha cara (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, 2008), Namora comigo (Moska, 2012) e mais recentemente revivendo Pra que chorar? (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963). Em tudo permanece aquela alegria contagiante da artista. Esse novo álbum não é diferente.

  Ninguém conhece ninguém (Martinho da Vila, 1968), primeira faixa do disco, é belo encontro entre pai e filha. Martinho da Vila e Mart'nália cantam a tão contraditória condição humana. Entre qualidades e defeitos, cada ser tem suas dores e suas vivências. Há uma metáfora na letra: a mariposa noturna, a qual, em princípio se mostra um animal asqueroso, como a barata em que Gregor Sanches foi metamorfoseado na obra de Kafka, ao mesmo tempo em que contém um angelical semblante. Seu corpo é deselegante, mas serve perfeitamente para dançar. É neste animal, feio, mas dotado de qualidades, que encontramos a alma humana, não isenta de suas contradições e multiplicidades. 
  
  Em tom bem animado, Tomara (Mart'nália e Mombaça, 2017), retrata a paixão por uma musa inspiradora, uma mulher bem moderna e desafiadora. Em seguida, Eu te quero agora (Zé Ricardo, 2017), é uma bela declaração de amor, mesmo que platônico, dada a contradição constante nos versos: “Sua boca grita pela minha boca // Que não te conhece mais que nunca te esqueceu”.

  Destaque deve ser dado ao bom partido alto, Ouvi dizer (Mosquito e Teresa Cristina, 2017), o qual retrata o fim de relacionamento e os conflitos ainda restantes; a inédita de Geraldo Azevedo e José Carlos Capinam, Se você disser adeus (2017);Sem dó (Rodrigo Lampreia, Beto Landau e Maurício Pessoa, 2017), minha faixa predileta; e, ainda, Libertar (Mart'nália, Zélia Duncan, Arthur Maia e Ronaldo Barcellos, 2017), com harmonia musical que traz paz ao ouvinte, destilando versos como “Nada é precipício // Basta eu encontrar você.

  Em mesmo estilo de tranquilidade está a faixa Melhor pra você (Tom Karabachian e Cris Sauma, 2017)Além disso, o segundo encontro do disco é em Si tu pars (Lokua Kanza, 1975), na qual a cantora recebe o compositor da música, autor e compositor do congo Lokua Kanza, em bom dueto. 

  Coube a música Vem cá, vem cá... (Zé Katimba, André da Mata e Mart'nália, 2017) provar que a cantora é a preta mais loura do mundo, por misturar ritmos de samba e artistas variados (tanto cantores como compositores), sempre tratando alegria e tristeza de forma ponderada .

  Mart'nália teve um ótimo pique para recriar Estrela (Gilberto Gil, 1981), Linha do Equador (Djavan e Caetano Veloso, 1992),  Tempo de estio (Caetano Veloso, 1977), sendo a última música lançada como single do CD. Além disso, encerra o trabalho com a junção dos tormentos de Ela disse-me assim (Vai embora) (Lupicínio Rodrigues, 1959) e Loucura (Lupicínio Rodrigues, 1957).

  A minha dor é perceber que o hit de carnaval de 2017, aquele que ninguém escapa de ouvir, não será nem os versos de “Vem cá, vem cá...” ou ainda de “Tomara”. Restará alguma outro mais simples e que não resistirá por muito tempo.

  Portanto, o álbum, indo além do samba, demostra que “quem nunca foi de samba, ainda vai ser do samba rasgado”. Assim, revele-se como um bom CD pra dançar alegrias e dramas dos mais variados.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Uma Curta Quase Retrospectiva de 2016







  2016 foi um ano difícil, seja na política brasileira, ou na vida deste escritor estudante. Mas de tudo é preciso aprender a extrair o melhor, do contrário o peso da existência é maior do que o castigo de Atlas. Então, lá vou eu me aventurar nessa empreitada.

  O ano de leitura foi um dos que mais li na vida, a despeito da escrita ter sido menos densa, quase rara. Contei: terminei o ano com quatro poemas completos e dezenas de fragmentos ainda por terminar. Mas vida que segue, lembrando o ensinamento de Cecília Meireles no inesquecível poema Canteiros: “eu ainda sou bem moço prá tanta tristeza // E deixemos de coisa, cuidemos da vida, // Pois se não chega a morte ou coisa parecida //E nos arrasta moço, sem ter visto a vida”.

  Encerrei o ano com 40 livros lidos (criei uma conta no Skoob pra acompanhar). Foram leituras bem múltiplas (ainda não tive nem tempo e nem disposição para resenhar todos). Li encíclica do Papa, poemas, contos, novelas, romances clássicos e contemporâneos, epístolas, livros infantis e histórias em quadrinhos. Conheci escritores fantásticos, com destaque para Mia Couto, Luiz Vilela (esse me arrebatou com um livro de contos infantis), Poe (contos), Passolini (esse eu era um leigo total, não conhecia nem o nome do incrível poeta italiano), Isabel Allende, Humberto Ecco, Baudelaire, Arundhati Roy e Truman Capote.

  Foram história tão múltiplas e ricas, que a memória mesmo sendo falha persiste em conservar. Guardo com admiração: o rabugento velho Tuahir, o esperançoso menino Muidinga e as aventuras fantásticas de Kindzu, na Moçambique de Terra Sonâmbula, do Mia Couto; os sôfregos gêmeos Estha e Rahel e o amor impossível e belo da mãe guerreira Ammu e do intocável Velutha, de O Deus das Pequenas Coisas, da indiana Arundhati Roy, a esquizofrenia do homem sem nome (quem bem poderia ser Josef K. de O processo, do Kafka) de Os Parricidas, do português Luís Novais; o peso da culpa e das melancolias de Theo, de O pintassilgo, da americana Donna Tartt; quase todos os personagens de A casa dos espíritos, da chilena Isabel Allende, em especial Clara e Estevan; o cômico Baudolino, de livro homônimo do Humberto Ecco; e o amor juvenil da forte Lina e de Andrius, de A vida em tons de Cinza, de Ruta Sepetys.

  Nesse ano li mais de Drummond e de Pessoas, poetas prediletos, a partir de excelentes seleções de poemas. Consegui reler três dos meus livros da vida: Dom Casmurro – Machado de Assis, Grandes Sertão: Veredas – Guimarães Rosa e A Paixão Segundo G.H. – Clarice Lispector. Além de reler livros ainda não lidos dos meus autores favoritos como as Novelas (Inácio, O Enfeitiçado e Baltazar) de Lúcio Cardoso e Felicidade Clandestina de Lispector.

  No munda da música brasileira, aventurei-me no emaranhados de Maria Bethânia, a qual assumiu de vez o posto de cantora favorita. Ouvi os singles e músicas inéditas dela, como Voz de Mágoa, Silêncio e Viver na Fazenda (todos já cantados no Show Abraçar e Agradecer de 2015, mas lançado apenas no fim de 2016), Mortal Loucura, Maria (bonita composição de Chico Lobo) e Era pra ser. Ouvi o CD gerado do Show Abraçar e Agradecer, e conheci composições de outros discos.





  Os melhores álbuns do ano, na minha singela opinião (ainda não tive tempo de ouvir todos os que queria, mas assim que poder vou resenha-los), foram: Tropix – Céu, Problema meu – Clarice Falcão, O mar me leva – Zizi Possi, Amor Geral – Fernanda Abreu e Remonta – Liniker e os Caramelows.
Dos filmes, vi poucos. Confesso que tenho certa resistência em assistir aos filmes. Mesmo assim muito gostei de Aquarius, já um dos melhores filmes da minha vida. Clara e a suas lutas, o seu amor aos filhos, a sua solidão, a citação a intensidade de Bethânia, enfim tudo faz com que essa película seja marcante.


  Das séries, destaque para a produção nacional (sou e sempre serei esse Policarpo louco), Justiça desnudou a hipocrisia reinante em nossa sociedade, com personagens únicos como Elisa, a professora de Direito, Fátima, com a sensacional interpretação e caracterização de Adriana Esteves, Mayara/Suzy, Doglas e Kellen, Firmino, cantando Dona da minha cabeça, Débora e Rose. A séria ainda tem uma excelente trilha sonora nacional, como poucas tiveram. Destaque também para Liberdade, Liberdade, que mesmo sendo de época consegui conquistar seu lugar.


  De tudo isso, retirando leite de pedra, 2016 teve lá os seus pontos bons e memoráveis.

domingo, 4 de setembro de 2016

Olhar sobre O mar me leva - Zizi Possi



 O mar me leva (2016) é um excelente EP, no qual a cantora e intérprete Zizi Possi se permite ir pelo lirismo melancólico da conexão entre Brasil, Cabo Verde e Portugal, através de mornas, gênero musical de Cabo Verde. Quatro faixas reafirmam o canto belo e triste da artista, sem que haja em sua voz drama exacerbado.

 A obra reafirma a grandeza de Zizi, já conhecida por grandes interpretações como Pedaço de Mim, Asa Morena, Perigo, Per Amore, Caminhos de Sol e tantas outras canções onde sua voz metálica marcou ouvidos e corações.

 Em O mar me leva, composição de Zeca Baleiro, única inédita, o eu-lírico encontra-se tão angustiado e perdido (Onde quer que a vida vá / Tudo é só desilusão) que se entrega as forças do mar e a seus caminhos.

 Já Olhos fechados, segunda faixa, Zizi e Baleiro traduzem para o português a canção Odjus fitchádu (Idan Raichel e Mayra Andrade, 2009), outra canção que trata de amor e solidão, no qual destacam-se os versos "Guardo de olhos fechados / Sua lembrança sempre junto a mim".

 Em seguida, Flor do sol (Chico César e de Zizi Possi), tradução da Morna PPV, de autoria do compositor cabo-verdiano Tito Paris, é a menos triste das composições, ressaltando o amor em versos como: "Mais vezes te vejo, mais quero te ver / E isso é bem mais que sonhar"

 Encerrando o disco, Coisas do coração, tradução feita por Zizi da morna do compositor cabo-verdiano Adalberto Silva, o Betu,  Cusas di curaçon (2010), outra belíssima composição  que trada do amor e se banha de lirismo, com inesquecíveis versos, tais como: "Coração vai batendo forte a bater / Dentro de mim é um vulcão apaixonado".

 Logo, O mar me leva reforça o canto triste e não dramático de Zizi, destacando-se pelo lirismo da composições. Obra-prima para se ouvir e ler as poesia nela contidas.

domingo, 21 de agosto de 2016

Olhar sobre O Castelo - Franz Kafka



Kafka, Franz. O Castelo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


  O romance O Castelo (escrito por volta de 1922), do escritor tcheco Franz Kafka, representa uma mordaz crítica ao Estado, como instituição administrativa burocrática e lenta, a partir dos absurdos vividos por um agrimensor em uma aldeia estrangeira.

  Com efeito, a ficção kafkaniana tem esse poder de causar espanto ao leitor, por meio da apresentação de alegorias por vezes irreais, pois o autor leva ao limite do improvável suas críticas, lançando seus personagens em um mundo de extremos.

  Nessa obra, o mundo burocrático moderno, com suas autoridades poderosas, é questionada pela chegada de um estrangeiro. Como o próprio protagonista, K. diz: “Aqui muita coisa aprece ter o objetivo de intimidar e, quando se acaba de chegar, os obstáculos parecem completamente impenetráveis” (p. 293).

  Em um povoado dividido entre a reverência aos burocratas do Castelo e a vida serviçal e temerária da população da aldeia, K., parece ser um filósofo, com seu espírito crítico, não aceita o banal e nem as coisas que lhe são imposta, busca desvendar a verdade sobre o povoado.

  Por outro lado, reside nele também uma ambição, o que o torna um anti-herói, levará a possuir Frieda, amante do poderoso e temido Klamm, só para ganhar proveito. Passa-se então a uma espécie de perseguição à autoridade, a águia inalcançável, assim como O Castelo e sua gente.

  Contudo, consegue em sua jornada apoio de aldeãos que também questionam o sitema, e não acreditam em sua perfeição e princípios, como é o caso da Família Barnabás, conforme diz Olga: “Ninguém poderia pôr muita fé naqueles discursos dos senhores; nessas ocasiões eles costumavam dizer com gosto algo agradável, mas que isso significava pouco, mal havia sido dito já tinha sido esquecido para sempre, embora certamente as pessoas na próxima oportunidade, estivessem sem dúvida outra vez nas mãos deles” (p. 230).

  Por fim, a leitura do livro se faz necessária por ser uma OBRA-PRIMA, diante da importantes reflexões sobre as autoridades e sobre a estrutura burocrática e reverencial que as mantém no poder, e sua relação com os administrados, além dos abusos a que podem chegar.


 Trechos:


P. 208: [Olga:] [...] Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso não significa que já não sabíamos antes, que nada será dado de presente a você [Baranabás], que pelo contrário terá de lutar por qualquer ninharia, motivo a mais para ser altivo e não abatido.

 P. 212: [K.:] [...] você pode animar alguém que tem os olhos vendados o máximo possível a olhar através da venda e ele nunca irá ver; só quando tirarem a venda é que ele será capaz de enxergar. Barnabás precisa de ajuda, não de encorajamento.· 


 P. 224: [Olga] Quando os senhores se levantam da escrivaninha, são assim: não sabem como lidar com o mundo; depois, distraidamente, dizem o que há de mais grosseiro, não todos , mas muitos.

P. 305: [Elanger:] Quanto maior, no entanto, é um trabalho – e o trabalho de Kalmm é sem dúvida o maior de todos –, tanto menos energia para se defender contra o mundo externo; por consequência, qualquer mudança insignificante das coisas menos importantes causa sério transtorno.
·   
P. 322: Porém já não fazia [Pepi] a pergunta com maldade como antes era o seu estilo, e sim com tristeza, parecendo ter, nesse lapso de tempo, conhecido a malevolência do mundo, diante da qual toda maldade pessoal fracassava e ficava sem sentido [...].

P. 331: Ele é agrimensor, talvez isso seja algo; ele portanto aprendeu alguma coisa, mas quando não se consegue fazer nada com o que se sabe, não se é nada outra vez.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Olhar sobre A Vida de Santo Antônio - Vergilio Gamboso



  Gamboso,Virgilio. A vida de Santo Antônio. Tradução de Carmelo Surian. Aparecida, SP: Editora Santuário, 1994.

  
  Uma concisa biografia de Antônio de Pádua, o famoso santo dos pobres e desconsolados, mariano e defensor da Assunção de Maria. Com efeito, Virgilio consegue apresentar a vida, os milagres e o contexto social e político de uma das mais famosas personalidade católica de forma direta, em linguem um pouco rebuscada, mas de leitura graciosa.

  De uma família nobre e poderosa, nasceu em Lisboa, por volta de 1190, Fernando, nome de origem visigodo, significando "ardoso na paz". Gamboso relata (p. 60) de forma sintética: 

"Muito fragmentada, a vida de Santo Antônio apresenta inesperadas peripécias. De cavaleiro à claustral, da aplicação ao estudo à expedição em terra muçulmana, da quietude eremítica à movimentada carreira de pregador popular."

  Essas e muitas outras histórias são recontadas pelo autor, apresentando inclusive as fragilidades das instituições religiosas, de forma ponderada, como só um católico consciente do passo da Igreja é capaz de fazê-lo.

  Canonizado em 20 de maio de 1232, pelo papa Gregório IX, teve 53 milagres aprovados. Dentre estes são mais famosos: a pregação aos peixes, o milagre da mula, a bilocação, e o milagre do avaro. Narrativas fantásticas e que merecem ser lida até pelos que não as creem, pela força poética com que são descritas e pelas influência que trouxeram, em especial para a arte, como a obra 'Milagre do coração do homem avaro' de Donatello (1447).
  
  Para quem não sabia, o franciscano foi escritor, deixando obras como  'Sermões dominicais', contendo os seus Sermões em louvor de Maria e os 'Sermões para as festas do ano', estes relatam as solenidades católicas de primeiro de janeiro a trinta de junho.

  Por fim, a obra mostra-se com um BOM livro, profícuo para os estudiosos de História, bem como para as pessoas curiosas pela história da igreja cristã e da católica. Com uma boa escrita, contém os textos do próprio Antônio, de modo a ser uma fonte segura para citação e conhecimento.


Trechos:

Lucílio, o satírico autor romano, costumava dizer: não desejo ser lido nem pelos incultos nem pelos cultíssimos, porque os primeiros nada entenderiam, e os outros (por causa da insidiosa "deformação profissional"), talvez entendessem mais do que o próprio autor. (p. 5)

Franciscanos e dominicanos tiveram rapidíssima difusão, rejuvenescendo a Igreja e constituindo poderoso dique contra a dissolução provocada pelos hereges e pelos maus pastores. (p. 67)

Aquilo que se conquista sobre os bancos das escolas não passa de uma base, o método. A cultura requer o hábito da reflexão, do confronto constante com as experiências da vida, para enfim ser assimilado e harmonizar tudo isso com o todo do nosso ser. (p. 72)

Nós homens somos, por assim dizer, como que animais "visivos": desconfiados e destruídos diante dos belos discursos e preguiçosos para recorrer aos livros. (P. 74)

Todo atentado contra a Fé católica era um atentado contra a segurança do Estado. [...] Não somente a sociedade, mas toda a vida cultural, assistencial, religiosa, dependia estritamente da Igreja. Um inimigo da Igreja era por isso mesmo um inimigo da civilidade, um demolidor dos fundamentos do viver social. (p. 95)

Frases de SA:

Exorcismo da bênção de Santo Antônio ou breve de SA:  "A onda do mar que se bate contra o escolha, se arrebenta; e a tentação que se atira contra ti, se te encontras unido a Cristo, se dispersa e é vencida." (p. 13-14)

"Se não se resiste ao mal da luxúria, acaba acontecendo que também as coisas que pareciam boas, perecem". (p. 17)

"Uma água turva e agitada não espelha a face de quem sobre ela se debruça. Se queres que a face de Cristo, que te protege, se espelhe em ti, sai do tumulto das coisas exteriores, seja tranquila a tua alma." (p. 20)

"A paciência é o baluarte da alma, ela a fortifica e defende de toda perturbação". (p. 39)

"O mundo é um lago de miséria e de lodo sórdido. O lago é uma massa de água estagnada que não flui". (p. 64)

"Que vos agrade mais ser amado do que temido. O amor torna doce mesmo as coisas ásperas e leve as coisas que pareciam impossíveis de carregar; o temor, porém, torna intolerável até as coisas leves." (p. 120)

"O mundo não te dá de presente, mas empresta; e quando a tua necessidade se torna mais grave, ele retorna o que é dele e te abandona, nu e mísero." (p. 171) 

sábado, 23 de janeiro de 2016

Olhar sobre Relato de um Náufrago - Gabriel García Márquez


  A novela em tom autobiográfico, escrito por Gabo, teve a importante missão de revelar a verdade sobre o naufrágio de uma embarcação marítima do Governo, em plena ditadura militar na Colômbia. A audácia do autor, trouxe-nos um relato agonizante, mas esperançoso.

  Famoso pelo seu "realismo mágico latino-americano", Gabriel García Márquez, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Tendo criado obras memoráveis como Cem Anos de Solidão, Amor nos Tempos do Cólera e Memórias de Minhas Putas Tristes.

  Quanto a obra em comento, percebe-se que o relato se diferencia do estilo do escritor, sem, contudo, deixar de ser um bom livro. Trata-se da batalha pela sobrevivência travada por Luís Alexandre Velasco, marinheiro e único sobrevivente do destróier colombiano A.R.C. Caldas. Enfrentando sede, fome, e o pior de tudo: a solidão. A morte dos amigos, os quais inutilmente o narrador tentou salvar, e a ausência de pessoas, dão-lhe como paisagem apenas mar, ventos uivantes e a escuridão.

  As aventuras do personagem, preso em uma balsa branca, na imensidão oceânica, tendo como conforto olhar o céu iluminado pela Ursa Menor, conferir o tempo no relógio florescente e pensar que o restante da tribulação está a salvo e vem para socorrê-lo de avião, leva o leitor a se imaginar nessa situação e a refletir qual ação tomaria. 

  Os torturantes dias em que fica à deriva no mar, enfrentando o hercúleo desafio de continuar a existir, são permeados por uma valsa entre a esperança e a falta de fé em si. Ao passo que a melodia (o transcorrer dos dias) avança quem conduz o baile é o desânimo. A descrença é tanta que talvez o único refúgio seja a morte.

  A crueldade da fome o leva ao conflito da gaivota: de um lado há o dever moral de marinheiro de não maltratar o animal, de outra sorte existe o instituto de sobrevivência e a necessidade de se alimentar. A guerra interna o conduz ao erro cruel e inútil, tendo como expiação não reincidir.

  Por tudo isso, o livro merece ser lido, por ser um BOM livro e pelo misto de agonia e esperança que oferece ao leitor, fazendo-o refletir sobre o que faria se fosse um náufrago, bem como pelas curiosidades referentes ao ambiente marítimo, os quais muitas vezes é desconhecido pelos habitantes do continente, como o fato de os tubarões serem míopes e apenas enxergarem objetos brilhantes e brancos.

Trechos:

  "A única coisa que contava para me salvar era com a minha vontade e o resto de minhas forças."

  "Há um instante que já não se sente a sede nem a fome. Um momento em que não se sentem nem as implacáveis mordidas dos sol nem a pele empolada. Não se pensa. Não se tem nenhuma unção de sentimentos. Mas ainda não se perdem as esperanças. Ainda resta o recurso final de soltar os cabos do entrançado e amarrarmo-nos à balsa."

  "O mestre do contratorpedeiro, um marinheiro experiente, disse-me: 'Não sejas infame. A gaivota para o marinheiro é como ver terra. Não é digno de um marinheiro matar uma gaivota.'"

  "Em todos os momentos tentei defender-me. Sempre encontrei um recurso para sobreviver, um ponto de apoio, por insignificante que fosse, para continuar à espera. Mas no sexto dia já não esperava nada. Eu era um morto na balsa."

  "Antes tinha sentido medo da noite, agora o Sol do novo dia parecia-me um inimigo. Um gigantesco e implacável inimigo que me vinha morder a pele ulcerada, enlouquecer de sede e de fome. Amaldiçoei o sol. Amaldiçoei o dia. Amaldiçoei a minha sorte por ter me permitido suportar nove dias à  deriva em vez de permitir que eu tivesse morrido de fome ou esquartejado pelos tubarões."