
HESSE, HERMANN. O lobo da estepe. Tradução e prefácio Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Antes da leitura, é preciso
ser feito uma advertência, a entrada é só para os raros, só para loucos, pois “este
é um livro que não se lê inocuamente, por mera distração ou para se estar em
dia com os sucessos do momento. É um livro que mexe, que altera, que subverte a
estrutura psíquica do leitor” (p.7), conforme bem pontua o tradutor Ivo Barroso.
Com efeito, a filosofia de Thomas
Hobbes asseverava: “O homem é o lobo do homem”. Hermann Hesse, por usa vez, em
1927, trazia homem e lobo como facetas oposta da personalidade humana, em seu
poético, psicológico e filosófico romance O Lobo da Estepe.
A ideia do livro é
sensacional: e se dado momento de sua vida você encontrasse um tratado sobre
sua personalidade, analisando-lhe a vida, as atitudes e as preferências? E se o
referido estudo fosse tão fidedigno a ponto de lhe tirar da zona de conforto e
te fazer mergulhar em si, alterando sua percepção sobre o modo como vive, bem
como abalando suas crenças?
Certamente, isto lhe levaria
a um mundo semelhante ao do Teatro Mágico, com efeitos psicodélicos e com
direito a retorno no passado e a possibilidade de mudá-lo. Você faria uma
viagem introspectiva e, a semelhança de G.H., de Clarice Lispector, perderia por instantes
a sua montagem humana.
Na obra, conhecemos o surpreendente
protagonista Harry Haller, autodenominado Lobo da Estepe, a partir de pelo
menos três pontos de vista. Pelo primeiro, um observador não muito familiar, relata
o período aproximado de 10 meses, no qual o Lobo foi inquilino de um quarto de
sua tia. Assim, escreve ele um prefácio ao livro, de modo a narrar o seu
encontro com instigante senhor de idade e de sua admiração, a quem considera um
“homem extraordinário” (p. 18), o que é reforçado na cena em que descreve com
detalhes o poderoso “olhar” de Harry.
Ademais, conclui o editor fictício que: “Haller
era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido de várias acepções de
Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial,
ilimitada e terrível” (p. 21).
Em seguida, a segunda
narrativa, apresenta as anotações feitas pelo próprio Lobo. Nesta parte, encontramos
um homem que se nomeia Lobo da Estepe, “aquele animal extraviado que não
encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e
incompreensível” (p. 41).
Como se o indivíduo
estivesse só no mundo tendo apenas a si mesmo, ou melhor, sua personalidade e
as obras dos imortais, em especial as partituras de Mozart e os escritos de
Goethe.
Não haveria laços com as pretensões
sociais da coletividade, como relacionamentos pessoais, disputa para ser o
melhor, o mais esperto ou de ajudar a humanidade, de contribuir para algo ou o
desejo de alguém. O homem viveria isolado da sociedade. Assim como um animal
selvagem, um lobo da estepe.
A última “voz narrativa”, ou
melhor, O Tratado do Lobo da Estepe, é uma espécie de psicanálise dada por pessoa
desconhecido da vida e personalidade da instigante personagem, fornecendo
subsídios capazes de levar o protagonista a pensar sua vida e sua solidão.
No
supramencionado estudo, considera a natureza dual e discordante de Harry, “nele
o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam mutuamente, mas
permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano
ao outro” (p. 53). A dualidade está no fato do “‘homem’ encerra tudo o que há
de espiritual, de sublime ou culto que encontra em si, e no "lobo"
tudo o que há de instintivo, de selvagem e caótico” (p. 71).
Desta forma, percebemo que o romance aborda a solidão, seja de amigos, de amores ou de laços sociais. O Lobo da Estepe, é um descrente desse mundo que passa a encontrar o que é felicidade após aproximação com Hermínia, em um enredo similar aos versos da música Corcovado, Tom Jobim (1960).
Deste modo, ao conhecê-la e, por seu intermédio,
Maria e Pablo, os quais o fazem conhecer um novo mundo de festas, bailes, drogas
e sexo; a independência e o isolamento de Harry terminam. Esta vida intensa e notívaga leva-o ao Teatro Mágico e possibilidade
de conversar com personalidades como Goethe e Mozart, com o fito de permitir o
autoconhecimento do protagonista.
Por todo o exposto, por abordar temas profundos como o questionamento sobre a necessidade
da guerra ou da solidão, a importância das obras clássicas e das atuais
manifestações culturais para o indivíduo, o suicídio, o vazio espiritual humano,
sempre uma maneira filosófica, poética e bem aberta, a leitura do livro destaca-se por ser uma OBRA-PRIMA.
Trechos:
P. 19-20
[...] o Lobo da
Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista,
oh! um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação poder-se-ia
escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e destruía a
celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada; não, isso
era o de menos. Havia nesse olhar um tanto mais de tristeza que de ironia; era
na verdade um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual traduzia um
desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só transverbava com sua desesperada claridade a pessoa
do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a
disposição do público
e o título
um tanto pretensioso da anunciada conferência – não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo nosso
tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial
de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda,
ia além
das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa
espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade;
expressava, num único
segundo, toda a dúvida
de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido
da vida humana. Esse olhar dizia: “Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!” E toda a
celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a
grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas
momices!
P. 48
eu podia
arranjar-me mesmo sem música de câmara e sem amigo, e era ridículo
consumir-me no impotente desejo de calor humano. Solidão é independência, com
ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era
silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.
P. 49
Éramos nós, velhos
conhecedores e reverenciadores da verdadeira poesia de outros tempos, apenas
uma minoria estúpida
de complicados neuróticos,
que amanhã seriam esquecidos e ridicularizados? O que chamamos cultura, o que
chamamos espírito,
alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e
considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente, nem era verdadeiro, nem
sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os
loucos, tanto defendíamos?
P.
55
Muita gente
existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa
classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma
parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão
contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses
homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em
seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza,
a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor,
que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento.
P. 58
tinha muitos amigos.
Um grande número
de pessoas o apreciava. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade;
recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua
vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu
redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não
podia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais
significativas de sua vida.
P. 60
a todos os
suicidas é
familiar a luta contra a tentação do suicídio. Cada um deles sabe muito bem, em algum canto de
sua alma, que o suicídio,
embora seja uma fuga, é uma fuga mesquinha e ilegítima, e que é mais nobre e belo deixar se abater pela vida do que
por sua própria
mão. Tendo consciência
disso, a mórbida
consciência
que é
praticamente a mesma daqueles satisfeitos consigo mesmos, os suicidas em sua
maioria são impelidos a uma luta prolongada contra a tentação.
P. 62-63
O homem tem a
possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa
de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se
inteiramente à
vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de
satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade,
ao martírio
do espírito,
à entrega a
Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção.
P. 63 Tratado
Viver
intensamente só
se consegue à
custa do eu.
P. 69 Tratado
Todo homem é uno quanto
ao corpo, mas não quanto à alma.
P. 124
[Hermínia:] pobre
daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros.
P. 129
Venho
manifestando já
por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas
"responsabilidades" políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa
que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou
por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra.
P. 145
[Pablo:] Ainda
que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as
coisas mais admiráveis
a respeito delas, isto não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando
tomo meu instrumento e coco um shitnmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar
alegria a alguém,
entrará
pelas pernas e até
chegará
ao sangue. Isto e somente isto é o que importa. Observe a fisionomia dos pares num
salão de dança no momento em que a música volta a tocar após uma pausa prolongada, observe como os olhos brilham,
como as pernas se movem e os rostos começam a sorrir. É por isso que se faz música.
P. 233-234
[Mozart:] O senhor
tem de viver e aprender a rir. Tem de aprender a escutar a maldita música de rádio da
vida, tem de reverenciar o espírito que existe por trás dela e rir-se da algaravia que há na frente.
É tudo o que exigimos do senhor.
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