domingo, 4 de setembro de 2016

Olhar sobre O mar me leva - Zizi Possi



 O mar me leva (2016) é um excelente EP, no qual a cantora e intérprete Zizi Possi se permite ir pelo lirismo melancólico da conexão entre Brasil, Cabo Verde e Portugal, através de mornas, gênero musical de Cabo Verde. Quatro faixas reafirmam o canto belo e triste da artista, sem que haja em sua voz drama exacerbado.

 A obra reafirma a grandeza de Zizi, já conhecida por grandes interpretações como Pedaço de Mim, Asa Morena, Perigo, Per Amore, Caminhos de Sol e tantas outras canções onde sua voz metálica marcou ouvidos e corações.

 Em O mar me leva, composição de Zeca Baleiro, única inédita, o eu-lírico encontra-se tão angustiado e perdido (Onde quer que a vida vá / Tudo é só desilusão) que se entrega as forças do mar e a seus caminhos.

 Já Olhos fechados, segunda faixa, Zizi e Baleiro traduzem para o português a canção Odjus fitchádu (Idan Raichel e Mayra Andrade, 2009), outra canção que trata de amor e solidão, no qual destacam-se os versos "Guardo de olhos fechados / Sua lembrança sempre junto a mim".

 Em seguida, Flor do sol (Chico César e de Zizi Possi), tradução da Morna PPV, de autoria do compositor cabo-verdiano Tito Paris, é a menos triste das composições, ressaltando o amor em versos como: "Mais vezes te vejo, mais quero te ver / E isso é bem mais que sonhar"

 Encerrando o disco, Coisas do coração, tradução feita por Zizi da morna do compositor cabo-verdiano Adalberto Silva, o Betu,  Cusas di curaçon (2010), outra belíssima composição  que trada do amor e se banha de lirismo, com inesquecíveis versos, tais como: "Coração vai batendo forte a bater / Dentro de mim é um vulcão apaixonado".

 Logo, O mar me leva reforça o canto triste e não dramático de Zizi, destacando-se pelo lirismo da composições. Obra-prima para se ouvir e ler as poesia nela contidas.

domingo, 21 de agosto de 2016

Olhar sobre O Castelo - Franz Kafka



Kafka, Franz. O Castelo. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


  O romance O Castelo (escrito por volta de 1922), do escritor tcheco Franz Kafka, representa uma mordaz crítica ao Estado, como instituição administrativa burocrática e lenta, a partir dos absurdos vividos por um agrimensor em uma aldeia estrangeira.

  Com efeito, a ficção kafkaniana tem esse poder de causar espanto ao leitor, por meio da apresentação de alegorias por vezes irreais, pois o autor leva ao limite do improvável suas críticas, lançando seus personagens em um mundo de extremos.

  Nessa obra, o mundo burocrático moderno, com suas autoridades poderosas, é questionada pela chegada de um estrangeiro. Como o próprio protagonista, K. diz: “Aqui muita coisa aprece ter o objetivo de intimidar e, quando se acaba de chegar, os obstáculos parecem completamente impenetráveis” (p. 293).

  Em um povoado dividido entre a reverência aos burocratas do Castelo e a vida serviçal e temerária da população da aldeia, K., parece ser um filósofo, com seu espírito crítico, não aceita o banal e nem as coisas que lhe são imposta, busca desvendar a verdade sobre o povoado.

  Por outro lado, reside nele também uma ambição, o que o torna um anti-herói, levará a possuir Frieda, amante do poderoso e temido Klamm, só para ganhar proveito. Passa-se então a uma espécie de perseguição à autoridade, a águia inalcançável, assim como O Castelo e sua gente.

  Contudo, consegue em sua jornada apoio de aldeãos que também questionam o sitema, e não acreditam em sua perfeição e princípios, como é o caso da Família Barnabás, conforme diz Olga: “Ninguém poderia pôr muita fé naqueles discursos dos senhores; nessas ocasiões eles costumavam dizer com gosto algo agradável, mas que isso significava pouco, mal havia sido dito já tinha sido esquecido para sempre, embora certamente as pessoas na próxima oportunidade, estivessem sem dúvida outra vez nas mãos deles” (p. 230).

  Por fim, a leitura do livro se faz necessária por ser uma OBRA-PRIMA, diante da importantes reflexões sobre as autoridades e sobre a estrutura burocrática e reverencial que as mantém no poder, e sua relação com os administrados, além dos abusos a que podem chegar.


 Trechos:


P. 208: [Olga:] [...] Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso não significa que já não sabíamos antes, que nada será dado de presente a você [Baranabás], que pelo contrário terá de lutar por qualquer ninharia, motivo a mais para ser altivo e não abatido.

 P. 212: [K.:] [...] você pode animar alguém que tem os olhos vendados o máximo possível a olhar através da venda e ele nunca irá ver; só quando tirarem a venda é que ele será capaz de enxergar. Barnabás precisa de ajuda, não de encorajamento.· 


 P. 224: [Olga] Quando os senhores se levantam da escrivaninha, são assim: não sabem como lidar com o mundo; depois, distraidamente, dizem o que há de mais grosseiro, não todos , mas muitos.

P. 305: [Elanger:] Quanto maior, no entanto, é um trabalho – e o trabalho de Kalmm é sem dúvida o maior de todos –, tanto menos energia para se defender contra o mundo externo; por consequência, qualquer mudança insignificante das coisas menos importantes causa sério transtorno.
·   
P. 322: Porém já não fazia [Pepi] a pergunta com maldade como antes era o seu estilo, e sim com tristeza, parecendo ter, nesse lapso de tempo, conhecido a malevolência do mundo, diante da qual toda maldade pessoal fracassava e ficava sem sentido [...].

P. 331: Ele é agrimensor, talvez isso seja algo; ele portanto aprendeu alguma coisa, mas quando não se consegue fazer nada com o que se sabe, não se é nada outra vez.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Olhar sobre A Vida de Santo Antônio - Vergilio Gamboso



  Gamboso,Virgilio. A vida de Santo Antônio. Tradução de Carmelo Surian. Aparecida, SP: Editora Santuário, 1994.

  
  Uma concisa biografia de Antônio de Pádua, o famoso santo dos pobres e desconsolados, mariano e defensor da Assunção de Maria. Com efeito, Virgilio consegue apresentar a vida, os milagres e o contexto social e político de uma das mais famosas personalidade católica de forma direta, em linguem um pouco rebuscada, mas de leitura graciosa.

  De uma família nobre e poderosa, nasceu em Lisboa, por volta de 1190, Fernando, nome de origem visigodo, significando "ardoso na paz". Gamboso relata (p. 60) de forma sintética: 

"Muito fragmentada, a vida de Santo Antônio apresenta inesperadas peripécias. De cavaleiro à claustral, da aplicação ao estudo à expedição em terra muçulmana, da quietude eremítica à movimentada carreira de pregador popular."

  Essas e muitas outras histórias são recontadas pelo autor, apresentando inclusive as fragilidades das instituições religiosas, de forma ponderada, como só um católico consciente do passo da Igreja é capaz de fazê-lo.

  Canonizado em 20 de maio de 1232, pelo papa Gregório IX, teve 53 milagres aprovados. Dentre estes são mais famosos: a pregação aos peixes, o milagre da mula, a bilocação, e o milagre do avaro. Narrativas fantásticas e que merecem ser lida até pelos que não as creem, pela força poética com que são descritas e pelas influência que trouxeram, em especial para a arte, como a obra 'Milagre do coração do homem avaro' de Donatello (1447).
  
  Para quem não sabia, o franciscano foi escritor, deixando obras como  'Sermões dominicais', contendo os seus Sermões em louvor de Maria e os 'Sermões para as festas do ano', estes relatam as solenidades católicas de primeiro de janeiro a trinta de junho.

  Por fim, a obra mostra-se com um BOM livro, profícuo para os estudiosos de História, bem como para as pessoas curiosas pela história da igreja cristã e da católica. Com uma boa escrita, contém os textos do próprio Antônio, de modo a ser uma fonte segura para citação e conhecimento.


Trechos:

Lucílio, o satírico autor romano, costumava dizer: não desejo ser lido nem pelos incultos nem pelos cultíssimos, porque os primeiros nada entenderiam, e os outros (por causa da insidiosa "deformação profissional"), talvez entendessem mais do que o próprio autor. (p. 5)

Franciscanos e dominicanos tiveram rapidíssima difusão, rejuvenescendo a Igreja e constituindo poderoso dique contra a dissolução provocada pelos hereges e pelos maus pastores. (p. 67)

Aquilo que se conquista sobre os bancos das escolas não passa de uma base, o método. A cultura requer o hábito da reflexão, do confronto constante com as experiências da vida, para enfim ser assimilado e harmonizar tudo isso com o todo do nosso ser. (p. 72)

Nós homens somos, por assim dizer, como que animais "visivos": desconfiados e destruídos diante dos belos discursos e preguiçosos para recorrer aos livros. (P. 74)

Todo atentado contra a Fé católica era um atentado contra a segurança do Estado. [...] Não somente a sociedade, mas toda a vida cultural, assistencial, religiosa, dependia estritamente da Igreja. Um inimigo da Igreja era por isso mesmo um inimigo da civilidade, um demolidor dos fundamentos do viver social. (p. 95)

Frases de SA:

Exorcismo da bênção de Santo Antônio ou breve de SA:  "A onda do mar que se bate contra o escolha, se arrebenta; e a tentação que se atira contra ti, se te encontras unido a Cristo, se dispersa e é vencida." (p. 13-14)

"Se não se resiste ao mal da luxúria, acaba acontecendo que também as coisas que pareciam boas, perecem". (p. 17)

"Uma água turva e agitada não espelha a face de quem sobre ela se debruça. Se queres que a face de Cristo, que te protege, se espelhe em ti, sai do tumulto das coisas exteriores, seja tranquila a tua alma." (p. 20)

"A paciência é o baluarte da alma, ela a fortifica e defende de toda perturbação". (p. 39)

"O mundo é um lago de miséria e de lodo sórdido. O lago é uma massa de água estagnada que não flui". (p. 64)

"Que vos agrade mais ser amado do que temido. O amor torna doce mesmo as coisas ásperas e leve as coisas que pareciam impossíveis de carregar; o temor, porém, torna intolerável até as coisas leves." (p. 120)

"O mundo não te dá de presente, mas empresta; e quando a tua necessidade se torna mais grave, ele retorna o que é dele e te abandona, nu e mísero." (p. 171) 

sábado, 23 de janeiro de 2016

Olhar sobre Relato de um Náufrago - Gabriel García Márquez


  A novela em tom autobiográfico, escrito por Gabo, teve a importante missão de revelar a verdade sobre o naufrágio de uma embarcação marítima do Governo, em plena ditadura militar na Colômbia. A audácia do autor, trouxe-nos um relato agonizante, mas esperançoso.

  Famoso pelo seu "realismo mágico latino-americano", Gabriel García Márquez, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Tendo criado obras memoráveis como Cem Anos de Solidão, Amor nos Tempos do Cólera e Memórias de Minhas Putas Tristes.

  Quanto a obra em comento, percebe-se que o relato se diferencia do estilo do escritor, sem, contudo, deixar de ser um bom livro. Trata-se da batalha pela sobrevivência travada por Luís Alexandre Velasco, marinheiro e único sobrevivente do destróier colombiano A.R.C. Caldas. Enfrentando sede, fome, e o pior de tudo: a solidão. A morte dos amigos, os quais inutilmente o narrador tentou salvar, e a ausência de pessoas, dão-lhe como paisagem apenas mar, ventos uivantes e a escuridão.

  As aventuras do personagem, preso em uma balsa branca, na imensidão oceânica, tendo como conforto olhar o céu iluminado pela Ursa Menor, conferir o tempo no relógio florescente e pensar que o restante da tribulação está a salvo e vem para socorrê-lo de avião, leva o leitor a se imaginar nessa situação e a refletir qual ação tomaria. 

  Os torturantes dias em que fica à deriva no mar, enfrentando o hercúleo desafio de continuar a existir, são permeados por uma valsa entre a esperança e a falta de fé em si. Ao passo que a melodia (o transcorrer dos dias) avança quem conduz o baile é o desânimo. A descrença é tanta que talvez o único refúgio seja a morte.

  A crueldade da fome o leva ao conflito da gaivota: de um lado há o dever moral de marinheiro de não maltratar o animal, de outra sorte existe o instituto de sobrevivência e a necessidade de se alimentar. A guerra interna o conduz ao erro cruel e inútil, tendo como expiação não reincidir.

  Por tudo isso, o livro merece ser lido, por ser um BOM livro e pelo misto de agonia e esperança que oferece ao leitor, fazendo-o refletir sobre o que faria se fosse um náufrago, bem como pelas curiosidades referentes ao ambiente marítimo, os quais muitas vezes é desconhecido pelos habitantes do continente, como o fato de os tubarões serem míopes e apenas enxergarem objetos brilhantes e brancos.

Trechos:

  "A única coisa que contava para me salvar era com a minha vontade e o resto de minhas forças."

  "Há um instante que já não se sente a sede nem a fome. Um momento em que não se sentem nem as implacáveis mordidas dos sol nem a pele empolada. Não se pensa. Não se tem nenhuma unção de sentimentos. Mas ainda não se perdem as esperanças. Ainda resta o recurso final de soltar os cabos do entrançado e amarrarmo-nos à balsa."

  "O mestre do contratorpedeiro, um marinheiro experiente, disse-me: 'Não sejas infame. A gaivota para o marinheiro é como ver terra. Não é digno de um marinheiro matar uma gaivota.'"

  "Em todos os momentos tentei defender-me. Sempre encontrei um recurso para sobreviver, um ponto de apoio, por insignificante que fosse, para continuar à espera. Mas no sexto dia já não esperava nada. Eu era um morto na balsa."

  "Antes tinha sentido medo da noite, agora o Sol do novo dia parecia-me um inimigo. Um gigantesco e implacável inimigo que me vinha morder a pele ulcerada, enlouquecer de sede e de fome. Amaldiçoei o sol. Amaldiçoei o dia. Amaldiçoei a minha sorte por ter me permitido suportar nove dias à  deriva em vez de permitir que eu tivesse morrido de fome ou esquartejado pelos tubarões."